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Crítica: A Febre
Entre o urbano e o ancestral: A Febre como denúncia poética do deslocamento e da resistência indígena

A febre do apagamento: a luta silenciosa de um indígena em um Brasil que insiste em negar suas raízes
“A Febre”, dirigido por Maya Da-Rin, é um filme propositalmente difícil. Não terá muitos adeptos entre o público comercial, mas revelará valor diante de uma audiência curiosa, pronta para ser instigada até mesmo pela inércia dos acontecimentos. A obra nos obriga a olhar para verdades incômodas sobre a nossa sociedade — um espelho inclemente que reflete o apagamento das identidades indígenas no Brasil contemporâneo. Com uma narrativa delicada, quase minimalista, a trama nos convida a acompanhar Justino (Regis Myrupu, em atuação hipnotizante), um indígena Desana que trabalha como vigilante no Polo Industrial de Manaus.
A trama, no entanto, transcende o individual e adentra questões estruturais que ainda sangram nossa história. Justino vive numa encruzilhada existencial. Ele deixou sua aldeia há décadas, mas nunca encontrou um lar de verdade na cidade. Entre as jornadas exaustivas de trabalho e a solidão da periferia de Manaus, o protagonista é um sobrevivente silencioso, um corpo que resiste enquanto a alma parece se desmanchar. Sua filha, Vanessa (Rosa Peixoto), representa a possibilidade de algo além: aprovada no curso de Medicina na Universidade de Brasília, ela significa um rompimento com os grilhões da invisibilidade. No entanto, a partida próxima da filha deixa Justino ainda mais perdido, intensificando o vazio que a cidade lhe impõe.
Maya Da-Rin constrói uma narrativa que transita entre o urbano e o ancestral de forma tensa. A fotografia de Bárbara Alvarez é um dos grandes destaques da obra, transformando Manaus em um espaço opressor, sombrio, quase sufocante. A luz esmaecida e os enquadramentos que comprimem Justino entre containers e construções revelam o quão deslocado ele está nesse ambiente. Essa Manaus não possui a luminosidade do sol de 40 graus, mas, sim uma escuridão triste e melancólica refletida pela alma de Justino, um ser que sabe está sendo caçado por ser quem é. Também é impossível ignorar a trilha sonora de Breno Furtado e Felippe Mussel que cria uma atmosfera mítica, um embate entre a resistência indígena e a mecanização urbana.
A montagem de Karen Akerman respeita o ritmo lento e reflexivo da trama, permitindo que cada cena se desenrole com naturalidade. A direção de arte de Ana Paula Cardoso acentua o contraste entre o ambiente hostil da cidade e os momentos de aconchego familiar, criando uma dicotomia poderosa. A escolha de Maya Da-Rin em trabalhar com atores não profissionais, como Regis Myrupu, contribui para o tom de veracidade que permeia o longa. O filme é repleto de momentos de pura poesia visual. Uma das cenas mais memoráveis é quando Justino conta uma lenda para seu neto, em tukano, resgatando a oralidade que mantém viva a identidade de seu povo. Esse momento é um respiro em meio a uma narrativa que frequentemente oprime.
O homem faz de tudo para tirar o indígena do lugar que sempre foi dele e quando esse finalmente abandona sua terra para tentar se adequar, é apenas para descobrir que nunca haverá um novo espaço para chamar de seu. Além de ser um filme emocionante, “A Febre” é também um ato político. Em um momento em que os povos indígenas enfrentam um projeto de destruição sistêmica no Brasil, o longa denuncia, sem histrionismo, as formas sutis e violentas de apagamento cultural. A febre que consome Justino é mais do que uma metáfora: é o reflexo de um corpo que carrega as dores de séculos de colonização e descaso.
O cinema brasileiro é injusto com os indígenas do Brasil. Por anos a fio, os realizadores não-índios apontaram suas câmeras para esses personagens com a curiosidade de um europeu ao desembarcar numa caravela. Sem credibilidade, sem voz própria, o povo indígena quase sempre foo retratado do ponto de vista do colonizador. E esse filme marca a estreia de Maya Da-Rin em longas de ficção com uma maturidade impressionante, é um cinema que exige, provoca e transforma. É impossível não se impressionar, afinal, a febre que se apossa do protagonista não é motivada por um vírus, por um mal estar passageiro ou por uma leve indisposição. É reflexo de algo muito maior e mais sério. Resultado do que não se vê nem combate, apenas entende e descobre como lidar.
Por: Carolinne Macedo (crítica de cinema do Sinopse e do jornal Primeira Página)
