Crítica: Antes o Tempo Não Acabava

Rompendo fronteiras: um retrato visceral da resistência e do pertencimento indígena

Cartaz cinematográfico do filme "Antes o Tempo Não Acaba". O visual é marcante: um rosto feminino, em close-up, é dividido em duas partes por uma linha vertical. A metade esquerda, em tons de branco e cinza, contrasta com a metade direita, em preto intenso. Os olhos da figura centralizam a atenção do espectador. Ao fundo, um emaranhado de linhas diagonais em vermelho vivo, que se assemelham a fios de alta tensão, cria um clima de tensão e movimento.

Entre a comunidade e a cidade: a busca por identidade em Antes o Tempo Não Acabava

“Antes o Tempo Não Acabava” é uma obra que cresce evidenciando as contradições de um Brasil profundo, mas pouco retratado no cinema. Sob a direção da dupla Sérgio Andrade e Fábio Baldo, o filme é uma imersão densa e reveladora na vida de Anderson, um jovem indígena sateré que tenta romper com as amarras de sua tribo para se aventurar nas incertezas da cidade de Manaus. O desenlace da trama é um retrato poético, inquietante e, acima de tudo, necessário, que nos obriga a encarar verdades desconfortáveis sobre identidade, modernidade e desigualdades.

Logo de início, a narrativa nos captura com imagens que impressionam pela força e simbolismo: rituais de iniciação com formigas de fogo que evocam uma brutalidade ancestral. Mas rapidamente somos conduzidos para um cenário bem diferente, onde o protagonista, vivido com uma expressividade arrebatadora por Anderson Tikuna, precisa navegar por um mundo urbano que o fascina e o repele. A história acompanha suas tentativas de reconstruir sua identidade, seja ao adotar um nome de “homem branco” ou ao explorar sua sexualidade em festas punk e relações casuais.

O grande mérito do filme é a capacidade de fugir dos clichês que normalmente povoam representações indígenas no cinema. Não há idealizações nem estereótipos: aqui, a aldeia é tanto um espaço de acolhimento quanto de opressão, enquanto a cidade, apesar de atraente, revela-se uma armadilha. A narrativa mescla esses contrastes com fluidez, ainda que por vezes perca ritmo ao adotar uma estrutura mais fragmentada. Essa escolha estética pode gerar a sensação de “pontas soltas”, mas também oferece momentos de pura beleza visual e emocional, onde o acaso se torna um recurso poderoso.

Os diretores são certeiros ao proporcionar que o protagonista revele sua ambiguidade. Transitando por diferentes mundos, mas nunca pertencendo completamente a nenhum deles. A atuação de Tikuna é fundamental para dar vida a essa complexidade, cada gesto nos conecta às suas angústias e descobertas, tornando sua jornada profundamente humana e universal. O filme também brilha pela fotografia que explora as nuances de Manaus, contrastando a claustrofobia das favelas com a vastidão dos rios. As escolhas de locação reforçam a ideia de um protagonista preso entre dois mundos. A trilha sonora, com influências pop e indígenas, também cumpre um papel importante na obra.

O filme não se esquiva de temas espinhosos. O embate cultural entre os rituais indígenas e a hegemonia branca é tratado com honestidade e sem julgamentos fáceis. Há, sim, críticas contundentes, tanto à rigidez dos costumes tribais quanto ao descaso do Estado e das ONGs com as populações indígenas. E a sexualidade retratada nesse longa-metragem não é apenas uma questão íntima; ela dialoga com o contexto de apagamento cultural e a luta por autoafirmação. Essa camada adicional dá ao filme um peso emocional e político que o torna único.

“Antes o Tempo Não Acabava” é, sobretudo, um filme que fala de pertencimento – ou a falta dele. Anderson é todos nós em algum momento: alguém dividido entre o que o mundo espera e o que deseja ser. Um jovem que grita, seja em seu dialeto ou em um barco no meio do rio, buscando ser ouvido em um país que insiste em silenciar suas minorias. É uma obra que nos faz pensar, sentir e, consequentemente, questionar. Talvez o tempo realmente não acabe, mas a identidade, como nos mostra esta obra singular, é algo em constante reconstrução.

Por: Carolinne Macedo (crítica de cinema do Sinopse e do jornal Primeira Página)