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Crítica: Ela Mora Logo Ali
O poder da palavra e do afeto: uma jornada de resistência e conexão em Ela Mora Logo Ali

O curta é uma prova do vigor do cinema independente brasileiro
O curta-metragem “Ela Mora Logo Ali”, dirigido por Fabiano Barros e Rafael Rogante, é uma produção que combina delicadeza narrativa e profundidade emocional. O filme nos transporta por uma história tocante e, ao mesmo tempo, desconcertante, ao nos apresentar uma mãe de classe baixa que encontra nas histórias orais uma ponte para se conectar com seu filho adolescente, portador de paralisia. É impossível assistir e sair ileso: o filme é um convite para confrontarmos realidades incômodas e refletirmos sobre as múltiplas formas de expressão e afeto que nos unem enquanto seres humanos.
A trama tem início em um ônibus, onde a protagonista, uma vendedora ambulante de banana frita, conhece uma jovem leitora apaixonada por Dom Quixote. A mãe, analfabeta, pede à garota que lhe conte a história do cavaleiro errante para que ela possa recontá-la ao filho, adaptando-a à sua própria linguagem e realidade. O momento diário entre as duas no ônibus é interrompido de forma abrupta quando a jovem leitora não retorna, deixando a mãe à deriva. Em um gesto de pura resistência e criatividade, a protagonista encontra maneiras de continuar contando as aventuras de Dom Quixote, ainda que sem conseguir ler o livro.
Os roteiristas, Fabiano Barros e Rafael Rogante, exploram o contraste entre o sagrado e o profano com maestria. Enquanto Dom Quixote é retratado como um artefato literário erudito, quase divino, a oralidade da mãe é cotidiana, profana, mas não menos poderosa. Ao recriar a clássica história para o filho, ela subverte qualquer ideia de sacralidade da obra de Cervantes, mostrando que a essência da narrativa não está em sua forma original, mas na conexão que ela promove. É tocante ver como a palavra falada, mesmo imperfeita, é capaz de transmitir sonhos, esperança e amor.
A direção dos cineastas prioriza os detalhes físicos do afeto entre mãe e filho, com gestos que falam mais do que diálogos poderiam dizer. A fotografia de Neto Avalcante capta a beleza do cotidiano da região amazônica, enquanto a montagem constrói um ritmo que ora embala, ora nos deixa em suspenso. A atuação de Agrael de Jesus é uma força por si só: ela traz à tela uma mãe brasileira que é, ao mesmo tempo, resiliente e vulnerável, encapsulando as contradições da maternidade em uma performance arrebatadora.
O curta é uma prova do vigor do cinema independente brasileiro. As narrativas regionais ganham destaque aqui, reafirmando a importância de histórias que ecoam vozes locais, mas que dialogam com temas universais. “Ela Mora Logo Ali” é um abraço para quem acredita no poder das histórias e uma provocação para quem as negligencia. O filme nos rememora que, no fim das contas, não é a sofisticação das palavras que importa, mas a força com que elas tocam o coração de quem as ouve.
Por: Carolinne Macedo (crítica de cinema do Sinopse e do jornal Primeira Página)
